O Dia

Da janela, o homem reparou que o mestre sufi Uways descansava na praça em frente de sua casa.

"Talvez ele possa me dizer algo importante", pensou.

Saiu e, fingindo estar distraído, aproximou-se do mestre. Depois de alguns instantes de hesitação, perguntou a Uways: "Como o senhor sente-se hoje?".

"Como alguém que acordou de manhã, e não sabe se estará vivo no final do dia", respondeu o mestre.

"Mas isto não é nenhuma novidade", disse o homem. - "Afinal, todos os seres humanos se encontram nesta mesma situação".

"Sim", disse Uways. "Mas quantas pessoas neste mundo se dão realmente conta disto?"

(Paulo Coelho, em sua coluna MAKTUB no Jornal Folha de São Paulo, na década de 1990)

Mas os garotos saberiam

Um pai levava seus dois garotos para jogar mini-golfe. Na bilheteria, quis saber o preço.

_ Cinco dólares para adultos, três para maiores de seis anos. Abaixo de seis anos, a entrada é grátis.

_ Bem... Um deles tem três e, o outro, sete. Então, pago a do mais velho.

_ Você é tolo! - disse o bilheteiro - Podia ter economizado três dólares, dizendo que o mais velho tinha menos de seis. Eu nunca saberia a diferença.

- Pode ser. Mas os garotos saberiam. E o mau exemplo ficaria gravado para sempre.

(do livro "Canja de Galinha Para a Alma", Ed. Ediouro)

O Rosto

Nasrudin foi até a casa de um homem rico pedir dinheiro para obras de caridade.

Um pajem veio abrir o portão. "Anuncie que o mullah Nasrudin está aqui e precisa de ajuda para ajudar os outros", disse o sábio.

O pajem entrou, e voltou minutos depois: "Meu senhor não está em casa."

"Então, permita que eu lhe deixe um conselho, mesmo que ele não tenha contribuído para nada", disse Nasrudin. "Da próxima veze que não estiver em casa, peça a ele para não deixar o seu rosto na janela - senão as pessoas podem achar que ele está mentindo."

(Paulo Coelho, em sua coluna MAKTUB no Jornal Folha de São Paulo, na década de 1990)

Inimigo oculto dá força ao guerreiro

Os amigos do guerreiro da luz perguntam de onde vem sua energia para a luta. E ele diz: "Do inimigo oculto".

Os amigos perguntam quem é. O guerreiro responde: "Alguém que não podemos ferir". Pode ser um menino que o derrotou numa briga na infância, a namorada que o deixou aos 11 anos, o professor que o chamava de burro, a garota que o chamava de feio.

O inimigo oculto, em vez de ser um trauma, passa a ser um estímulo. Quando se sente cansado, o guerreiro lembra-se que o inimigo oculto ainda não viu sua coragem.

O guerreiro não pensa em vingança, porque tal pessoa não faz mais parte da sua história. Pensa apenas em melhorar sua habilidade, para seus feitos cheguem aos ouvidos dela.

A dor do passado virou força do presente.

(Paulo Coelho, em sua coluna MAKTUB no Jornal Folha de São Paulo, na década de 1990)

Antipatia

Vou dar uma conferência em Kyoto, junto com o coreano Tae-Chang Kim. Quando nos encontramos para acertar detalhes, sinto que há uma antipatia imediata entre os dois - ou, que "meu santo não cruzou com o dele, e vice-versa".

Durante o debate, porém, as coisas andam melhores do que imaginei. A rivalidade inexplicável se transforma numa energia positiva, fazendo com que cada um dê o melhor de si, e tome o dobro de cautela para não se tornar agressivo.

O resultado é um sucesso - mas continuo não gostando dele, e ele continua não gostando de mim. Um amigo meu, que percebeu nossos sentimentos, observa: "é o atrito de duas pedras que permite a faísca de luz."

(Paulo Coelho, em sua coluna MAKTUB no Jornal Folha de São Paulo, na década de 1990)

A Rocha

Um bom guerreiro da luz tem as qualidades de uma rocha. Quando está em terreno plano - tudo à sua volta encontrou a harmonia que buscava - ele se mantém estável. As pessoas podem construir suas casas em cima do que o guerreiro criou, porque a tempestade não será destruidora.

Quando, porém, o colocam em terreno inclinado - e as coisas à sua volta não mostram qualquer equilíbrio - ele revela sua força, rolando em direção ao inimigo que ameaça a paz. Nestes momentos, o guerreiro é devastador, e ninguém consegue detê-lo.

Um guerreiro da luz pensa na guerra e na paz ao mesmo tempo, e sabe agir de acordo com as circunstâncias.

(Paulo Coelho, em sua coluna MAKTUB no Jornal Folha de São Paulo, na década de 1990)

Detalhes podem desviar de Deus

Um grande sábio sufi passou anos meditando sobre a vida. Para dividir seu conhecimento, fez um belo desenho numa folha de papel e mostrou aos seus discípulos.

Os seguidores do sábio sufi mandaram imprimir o desenho numa placa de bronze.

Logo, a notícia se espalhou e começaram a vir peregrinos do mundo inteiro, para decifrar cada linha do desenho. Em poucos anos, as pessoas passaram a adorar a placa de bronze, como se fosse sagrada.

"Os fiéis se prendem aos detalhes e esquecem Deus", disse o sábio, vendo o que havia acontecido.

Mandou fundir a placa e a transformou em caldeirão. "Pelo menos desta maneira o bronze não perde o seu significado".

(Paulo Coelho, em sua coluna MAKTUB no Jornal Folha de São Paulo, na década de 1990)